da experiência

eu tinha vinte e sete anos em doze de maio de dois mil e doze.

até o dia doze de maio de dois mil e doze eu já tinha pensado em temas largos, imensidões,  como a morte, o tempo e já tinha lido grandes romances, adotado poetas, visto grandes filmes, conversava sobre fotografia e tomava café sem açúcar.

eu tinha vinte sete anos e algumas convicções a respeito da política do mundo, do funcionamento do tempo, da realidade literária. crenças.

em doze de maio de dois mil e doze eram tempos de ingenuidade e eu ainda desligava o telefone da tomada e filtrava os e-mails que respondia e me preocupava muito em arranjar trabalhos já que aos vinte e sete anos eu tinha decidido me mudar de cidade, decidido seguir com umas ideias, aos vinte e sete anos talvez fosse a hora de começar alguma coisa que fizesse algum sentido.

em doze de maio de dois mil e doze eu morava em São Paulo, num apartamento de um quarto, estava com pouco dinheiro mas já tinha comprado livros novos que se acumulavam na pilha ao lado da cama daquilo que era urgente ser lido, que nunca diminuía porque apesar de trabalhar com literatura eu guardava uma memória ancestral de operário que só valorizava o que se fazia com as mãos e por muitas vezes eu trocava a leitura pelos trabalhos da cozinha, pela organização das prateleiras, por consertar as tomadas e instalar a cortina nova.

mas aos vinte e sete anos eu era mais insistente e escolhia por critérios racionais e nem tanto os romances que chegariam na minha casa.

em doze de maio  de dois mil e doze eu ainda recuperava meu corpo de uma noite anterior bastante cansativa mas estava feliz porque viria finalmente o grande show que eu ainda não sabia que seria às vinte e uma horas.

às vinte e uma horas eu ainda não sabia que decantaria tudo isso de que eu era feita aos vinte e sete anos, que eu suspenderia por alguns minutos a preocupação com a grana, com o trabalho-em-processo, com a saúde de minha mãe e o filho do meu irmão mais novo que chega logo, eu suspenderia a uma hora as lembranças e as ideias e as memórias e aquilo que eu era e já tinha deixado de ser e o que achava que era e aquilo que eu cria que sabiam de quem eu era, eu assentaria por uns minutos a ansiedade, empilharia as incertezas do lado escuro da memória.

às vinte e duas horas e trinta do dia doze de maio de dois mil e doze eu tomei uma vodca com minha amiga, e esperava o show começar, sentada na quinta fileira de um auditório espaçoso onde teria uma experiência de desintegração porque por uns minutos o que eu achava que era aos vinte e sete anos não importava. eu fazia força para me esquecer que precisava pôr as meias para lavar e comprar pão para o café da manhã, eu me esquecia que precisava retomar de uma vez os projetos que estavam protelados em C://Meus Documentos/Importâncias porque por um pouco mais de uma hora em doze de maio de dois mil e doze eu era reverberação, eu e os atentos éramos a sala de concerto, e eu sentia o assoalho e os dentes vibrarem, eu sentia a força daquele ar que vinha abrupto desde o palco e acalmava para depois explodir e por alguns minutos eu tinha certeza que fiz parte de alguma coisa muito maior que eu mesma, eu me desintegrei porque já não havia indivíduos, fomos por alguns instantes da mesma natureza elétrica, caixas acústicas aquela música ressonava na minha caixa torácica, ao redor dos pulmões, a música, ao redor do coração, a música, me conectando a outras pessoas, me descolando do centro do mundo, vibrando cada molécula, misturando meus desejos a lembranças de longe.

ainda trago comigo os desejos desconhecidos de quem ocupava as poltronas vizinhas.