treze

Você sabe que não vai dormir com ele esta noite. E que o espaço entre a grade que impede, por uma questão de convenção, porque não há grades tão fortes que impeçam vinte mil pessoas de ultrapassarem certos limites, você sabe que o espaço entre a grade que afasta o palco das primeiras fileiras de fãs é muito maior que o espaço mensurável entre ela, a grade, e as caixas de retorno, é muito maior que o fosso que tenta proteger e de fato protege o príncipe desejado que canta, com a mesma voz rouca de antes, todas as canções de sua adolescência.

E que seria muito mesmo esperar que ele, o príncipe desejado, ao fim de um show histórico em seu país, que seria comentado no dia seguinte e que era comentado ao vivo pelos milhares de smartphones conectados da audiência, seria mesmo muito esperar que o príncipe desejado ao final do show fosse até bem próximo da grade que o protege de seus/suas fãs enlouquecidos/as, pegasse suavemente sua mão e a ajudasse a pular o cercado, a levasse para os fundos do palco e dissesse todas as coisas que você sempre sonhou que ele dissesse para você quando você tinha treze anos e ainda não tinha beijado ninguém e dormia sonhos intranquilos vendo a foto dele no pôster do seu lado do quarto que dividia com seu irmão e ele não se importaria com seu corpo suado e acima do peso nem com suas roupas baratas nem com seus olhos doentes porque ele, afinal, também esperava por aquele encontro.

Você não vai dormir com ele esta noite e é claro que você nunca teve esperança disso. Você não tem mais treze anos, você tem quase trinta e as coisas agora são menos engraçadas às vezes, mas são também menos dolorosas não porque tudo melhorou para você mas porque principalmente você já não espera mais grandes coisas para sua vida o que não é ser pessimista mas afinal adulta. Estar aqui, vendo este show, o show de sua banda preferida quando tinha treze anos e dormia de fones nos ouvidos olhando a foto do príncipe desejado em trajes britânicos olhando profundamente para você naquele pôster que veio na revista adolescente do mês de seu aniversário e que com certeza seria um sinal de que algo muito misterioso ligava vocês dois já era muito especial estar aqui vendo esse show e tentando com todas as forças lembrar com que vida mesmo aos trinta você sonhava quando tinha treze.

E ele não sorriu para você. Você retribuiu, o coração acelerou, mas ele não sorriu para você, sorriu para todo o lado esquerdo da primeira segunda e terceira filas de fãs enlouquecidos que chegaram doze quinze vinte horas antes do concerto e ficaram heroicamente parados esperando o show enquanto eles, os caras da banda, passavam um tempo de concentração no hotel cinco estrelas da cidade antes do show no seu país, ele, o príncipe desejado, sorriu para uma espécie de colar emaranhado de intenso amor platônico, sorriu porque ele deve ter sentido esse amor apesar de abstrato — o amor platônico é igual em São Paulo, Florianópolis, Praga, Roma, Londres, Lima, Nova York, Chicago, Manchester, Barcelona, Madri, Porto, Maputo, Tóquio, e até Curitiba, é idêntico o rosário de amor impossível em qualquer grande ou pequena cidade que a banda de sua adolescência tocou nesta megaturnê de retorno da banda que era banda preferida de quando você tinha treze anos e sonhava em conseguir qualquer coisa que não fosse aquilo que era quando tinha treze anos e o carinha malvado da escola, que não era nada parecido com o príncipe desejado que ficava à frente da sua banda preferida mas que era sua paixão se é que podemos falar nesses termos tão intensos aos treze anos mas que era enfim sua paixão no tempo da escola disse diante de todas as meninas da oitava série que é claro que ele nunca ficaria com você na festa pelo menos enquanto você fosse boazinha daquele jeito.

Pois aqui está você, diante desta que era a banda que curava seu coraçãozinho apertado cheio de pequenos e minúsculos problemas muitíssimo menores que os problemas concretos de seus pais que tinham perdido tudo que tinham porque o seu pai tinha apostado o apartamento e o carro da família numa mesa de jogo e que diante dessa tragédia econômica e de distúrbio social o que era ter sido rejeitada ainda que violentamente diante de seus colegas de escola já que nem tinha mesmo idade para namorar e tantos outros viriam ainda que de fato tivessem sido pouquíssimos e que nunca mais se lembraria disso assim tão dolorosamente quanto naquela noite em que chegou em casa e ouviu umas vinte vezes o disco de sua banda preferida e chorou detestando não o idiota do menino malvadinho do colégio mas a si mesma que teve a ideia idiota de perguntar para o cara uma coisa idiota dessas, foi a ideia mais estúpida que teve na vida até aquele dia, e você odiou com tanta força sua imagem no espelho e o fato imutável de que não tinha o tamanho que uma pessoa inútil devia ter que nunca desapareceria completamente sendo a mais alta da turma e que isso era terrível e que se pelo menos houvesse uma maneira de desaparecer por um tempo e sua mãe abriu a porta do quarto sem bater e fingiu que não viu que você chorava abriu a porta do armário para pegar alguma coisa talvez o secador de cabelos e depois veio seu irmão e um amigo e ficaram rindo e tudo aquilo que sentiu a raiva de si mesma e a tristeza de um coraçãozinho ainda virgem de amor e de tudo o que ia passar por causa disso e de razões maiores na vida foi soterrado pelo barulho do liquidificador do jantar do jornal da noite e horas depois exausta mas sem sono você pegou um caderno qualquer e escreveu umas coisas. Foi assim que começou não foi?

E você tem agora quase trinta anos. E está ali, na primeira fila do show da banda preferida de sua vida, e percebe que houve um grande deslocamento do tempo que não era mais hora de ver aquele show que você não era mais a mesma pessoa nada mais a incomodava tão profundamente quanto naquele tempo apesar de estar acima do peso, apesar de ainda querer se esconder em muitos momentos por exemplo quando alguém pergunta o que tem feito da vida e de nunca conseguir formar frases inteligentes quando precisa fazer isso em geral em palestras íntimas com pessoas que têm certeza de que são profundas e racionais e seguras você está ali muitíssimo perto do príncipe que agora está mais gordo também, e até um pouco careca, mas continua muito bonito e você está ali excitada pela música pelas distorções das guitarras e pelo sol se pondo nos seus ombros e por estar tão perto quanto nunca esteve do homem de sua adolescência Let it the flow Let it the flow mas plenamente consciente, talvez não tanto quanto as garotinhas que estão ao seu lado, as garotinhas de treze anos que tiveram mais sorte que você e estão do seu lado no tempo certo de ver uma banda daquelas, você (I) sabe que não dormirá (sleep) com ele esta noite (alone).

Você vai voltar para casa mais tarde, para seu pequeno apartamento, para seus livros, você vai voltar para casa e vai dormir com zumbidos nas orelhas, vai tirar as botas e quase não vai sentir os pés inchados e doloridos, vai tomar um banho e não vai se imaginar com o príncipe desejado cujos olhos estão agora tão marcados pelo tempo como seus quadris estão flácidos, você vai tomar um banho depois do show e vai se lembrar de que um dia teve esperança de que coisas mágicas e incríveis aconteceriam em sua vida dali uns anos e futuro do pretérito é o tempo da melancolia e era só esperar sem saber exatamente o que seriam essas coisas mágicas e incríveis. Você vai se lembrar do carinha malvado da oitava série que fumava atrás do banheiro e que não te achou boa o suficiente para ele mas que depois que seus hormônios deram um jeito naquele corpo magro e tímido e alto depois que você teve curvas as coxas fartas e sua cintura evidente o carinha do colégio veio atrás de você numa tarde querendo te beijar e você virou o rosto e ninguém porque não era o mesmo colégio sabia o que realmente estava acontecendo ali e vai sorrir.

Você vai colocar seu disco preferido apesar de ter acabado de voltar do show da banda preferida daqueles anos sombrios e alegres e tristes e solitários e vai pensar que sua vida agora aos trinta não é nada mágica mas o que seria uma vida perfeita e mágica afinal? Nada não há nada para reclamar.

E você ouve sua música preferida. E faz um esforço quase muscular para chorar porque é preciso chorar é preciso finalmente chorar pelo dia em que se despediu de um velho amor que se apagou aos poucos e do dia em que quase morreu num acidente de carro voltando do bar no primeiro porre de sua vida e do dia em que gozou pela primeira vez com o corpo de outro dentro do seu do verdadeiro e lindo amor que sentiu algumas vezes e precisa chorar porque apesar de não ser mais a garota de treze anos que tem todas as possibilidades por exemplo entrar de alguma maneira para o mundo da indústria da música a ponto de ter tido uma real oportunidade de estar hoje assistindo ao show de sua vida na lateral do palco e depois tomar uma cerveja com o príncipe desejado que seria então mais um cara cool com quem você conversaria você agora tem trinta anos e não pode mais ser bailarina e não sabe nadar nem dirigir mas você tem um amor bonito livros sem ler você está acima do peso e se incomoda mais do que gostaria com a louça na pia mas você chorou porque se esforçou quase como uma atleta para isso mas também porque você vê certas coisas bonitas e porque de alguma maneira, apesar do fosso, das distâncias imensuráveis entre você e aqueles caras ali em cima houve um momento em que alguém talvez mesmo o príncipe desejado sentiu a mesma coisa que você e escreveu uma música simplória mas muito intensa e agora você ouve, vinte anos depois, a música que mudou alguma coisa em você numa noite quando tinha treze anos e sonhava com coisas grandes e mágicas para sua própria vida o que significava basicamente qualquer coisa que fosse diferente do que tinha sido naquela noite e antes.

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