Tel-Aviv [WIP]

Não, nesta noite ele não morrerá. Tampouco na noite de amanhã, nem na que se seguirá a esta. Ele, seu pai, morrerá daqui uns anos, de uma morte suave, em casa, como morrem os velhos cujo corpo já não se comunica muito bem. Ele não morrerá no hospital, ninguém vai precisar engajar qualquer esforço numa tentativa meio burocrática de ressurreição. Seu pai voltará à clínica amanhã, andando, àquela casa improvisada onde há anos tenta se esconder de sua própria vontade de morte. Também nisso ele vai falhar.

No bar do aeroporto ele escreve para a ex-mulher dando notícias positivas sobre a saúde do avô dos filhos deles. Não, ele não morrerá. Amanhã já estará na clínica, vai voltar andando.

No bar do aeroporto ele quase reconhece o rosto deformado que se reflete da máquina de café expresso. Seu pai. Não, não morrerá esta noite.

No bar do aeroporto enquanto espera pelo embarque ele pensa em Anabel.

– Tem umas coisas em comum, a gente.

[O gosto do céu azul e até o mesmo céu que nunca fica azul da cidade onde crescemos e também a preferência por sobremesas azedas e o mesmo ano foi que aprendemos a andar de bicicleta, cada um em um canto diferente do mesmo bairro, e também a excitação pelos mesmos toques e o mesmo medo de ficarmos presos um no outro, um no corpo do outro, um dentro do outro, e tem também aquela música estranha aquela letra em castelhano e a memória que é a mesma que se acende o cheiro de chá de cravo com laranja o cheiro do eucalipto a sombra de árvores semelhantes, a grama sempre úmida e o natal, que era uma pinha pintada de spray verde e dourado na escola.]

– Como está seu pai?

– Ele vai ficar bom. E as crianças?

– O Henrique está meio gripado, não foi pra escola, deixei ele dormir mais. Ah, sim, e a Fer pediu pra avisar que ela quer ir acampar nesse fim de semana então ela não vai poder ir na sua casa no domingo. Tudo bem pra você?

– Tudo bem.

Mas a Anabel, por onde anda? Ele esperava encontrá-la no hospital, ela devia saber do estado do seu pai, ela sempre esteve por perto da família, ela ainda conversa com sua irmã. E ela desconfiaria que ele estaria na cidade, a UTI, ela devia ter ido. Por que não apareceu, depois de tantos esses anos ele queria vê-la mais uma vez.

– Meu Deus! Como assim? O que você está fazendo aqui?? Que surpresa estranha! Ah, feliz Natal!

– Então, vim ver meu pai. Tem um jantar de fim de ano lá na clínica. A Maria não pôde vir, então…

– E como ele está? Ele está melhor?

– Sobrevivendo. Ele nunca foi muito bom em satisfazer suas vontades…

– Afe, não fala assim.

– E você tudo bem?

[O mesmo livro sobre a vida silenciosa das plantas e a imagem do mesmo santo meio tosco comprado na mesma loja mística do centro da cidade. O mesmo gosto pela irresponsabilidade, o mesmo gosto pela vontade de que não durasse para sempre.]

– E seus filhos?

– Ficou em casa, com a Eduarda.

– Sei.

– Digo, na casa dela.

– … Bom, tenho que ir agora. Mande um beijo pro teu pai.

– Mando, claro. E bom te ver.

– Vai ficar por aqui?

– Não, vou pra Israel dia 2.

– Bem, nos falamos.

[O mesmo quase amor, mas ele menos coragem. Um filho. Uma desistência.]

– E o Henrique?

– Então, te falei, tá dormindo até mais tarde.

– Ele vai lá em casa?

– Acho melhor não, né, tá meio enfebradinho ainda. Deixa ele melhorar, daí eu levo ele no meio da semana, vocês comem uma pizza e…

– Vou pra Israel na quarta.

– Bom, a gente combina. Mas você vai deixar aí seu pai na UTI e viajar de novo?

– Ele tá bem. E a Maria chega hoje à noite.

– E teu pai?

– Pois é, de novo isso. Acho que ele vai ter que ficar nesta clínica agora.

– Espero que fique bem. E você? E seus filhos, como estão?

– As crianças estão em casa, você sabe, com a Duda.

– Sim, eu sei, a Duda…

– Bom. Tenho que ir, Bel. Se cuida, tá? Bom te ver.

[O mesmo desejo um pelo corpo do outro mas ele menos coragem. A mesma sensação de aquilo até que poderia durar mais, mas ele menos coragem. O mesmo amor nascendo manso, os discos parecidos, a infância e as mesmas tardes sem sol,  a geada indo para a escola de manhã, eles tinham mesmo tanta coisa em comum, só que ela, ela tinha menos medo.]

– Uau, a gente tem mesmo muita coisa em comum, hein, senhorita. Como mesmo a senhorita disse que se chama?

– É Anabel. Prazer! Olha só, eu estava indo me encontrar com uns amigos ali perto da faculdade então se você quiser ir com a gente quem sabe a gente descobre que é mesmo almas gêmeas, o que você acha?

– Acho uma proposta irrecusável. Onde mesmo você estuda?

– Na federal. Ali no campus do centro.

– Sério? O que você faz?

– Geografia.

– Sério? Meu pai dá aula lá, sabia?

– Fala sério, tá brincando, não tá?

– Juro pela alma de minha mãe.

– Que espero não seja minha analista!

Ele riu.

– Mas, bóra lá?

– Demorou!

 

– Como mesmo você disse que ela se chama?

– Duda. Eduarda.

– Eduarda… É ainda a mesma lá de Israel, né?

– Sim, é ela. Mas, Bel, veja bem, não quero te machucar mais, então…

– Escuta. Não precisa falar nada. Eu na verdade é que preciso te contar uma coisa. Você ainda está na cidade? É que por telefone é meio foda…

– Eu tô aqui no bar do Alberto.

– Agora não rola. Podemos almoçar amanhã?

– Sim. Lugar de sempre?

– Ok. Nos vemos então. Beijo.

 

[Filhos, um mesmo fim.]

 

– E quando é que você ia me contar?

– Olha. Eu não queria terminar antes do tempo, eu…

– Quando você viaja?

– Vou pro Rio na quarta. Na sexta embarco para Tel-Aviv. Por favor, não fique assim.

– Ok. Eu já estou melhor.

– Me desculpe, Bel, se quiser, eu posso ir pra minha casa, se você quiser. Eu só queria ficar o máximo de tempo com você, mas fui idiota. Eu sei e…

– Hoje ainda é sexta, não é? – Ela sorriu.

– Sim. Meu, Bel. Você… Eu te… Eu gosto tanto de você, Bel. Mas você entende, não entende, o mestrado, a bolsa, eu…

– Quer tomar uma cerveja comigo lá embaixo?

[O mesmo gosto pela aventura, mas ele mais coragem. A mesma vontade um do outro, mas ele foi.]

– E então, o que tinha pra me contar?

– Não faz muito sentido te contar agora, sabe. Mas tá foda segurar isso sozinha.

– Meu, o que foi? Fale logo, tô meio assustado.

– Lembra do nosso acidente? Aquela noite? Antes de você ir?

– Sim?

– Então. Puta merda, eu já me arrependi de ter vindo. Desculpe, desculpe.

– Ei, calma, Bel, tá tudo bem, calma.

– Engravidei. E resolvi tirar.

 

– E então, o que você ia me dizer?

– Olha! A Fernanda. Ela vai ter um irmãozinho!

 

– O que você tinha pra me dizer?

– Que há vinte anos eu penso em você e isso tem ficado nos últimos anos cada vez mais recorrente e aí eu cheguei nesta cidade e tinha que ver meu pai mas a única pessoa que queria ver mesmo era você.

 

– O que você ia dizer?

– Eu queria ter tido esse filho com ela.

– O que você quer me dizer?

– Estou namorando. É uma colega aqui do mestrado. Eu preferiria que você soubesse por mim porque a gente tá voltando pro Brasil. Ela tá grávida.

Estou absurdamente apaixonado por você há anos, ele pensou, vendo a foto dela no celular.

Por onda anda Anabel, ele pensa. Pela última vez naquele aeroporto, que voltaria a pisar apenas no dia do velório do seu pai, que morreria dali a alguns anos, de velhice e calmo. Por onde anda Anabel que não me ama mais?

Queria ter notícias dela, queria ter ele mesmo tirado uma fotografia dela, que aquele sorriso na foto tivesse sido pra ele, que aquele brilho nos olhos fosse por causa dele, uma 3 x 4 guardada na carteira, um bilhete no bolso secreto do casaco, qualquer relíquia daquele tempo que nunca mais visitaria. Nunca mais.

A última chamada para o embarque foi anunciada. Ele ouviu seu nome completo. Exatamente o mesmo nome do seu pai. Era o que ele tinha agora: um assento num avião e o nome, idêntico, o mesmo nome do seu pai.

anunciação – processo #1

“Ela perturbou-se com estas palavras e começou a pensar qual seria o significado.” (Lucas, 1, 29)

 

Um livro tem o tempo que representa e o tempo da leitura. E tem também o tempo de sua fatura. No caso do Anunciação, há ainda o tempo das desistências e tem o silêncio, tempo esse em que a Terra do lado de fora dele não parou de girar assim como não parou seu processo de vida/morte o meu corpo dentro deste planeta, neste universo.

Porque o corpo que crescia fora dele, enquanto suas primeiras páginas continuavam esquecidas no computador, é um corpo fértil, que amadurecia. E ao mesmo tempo um corpo que tentava entender um não sei quanto de vazio e de estranhamento. E, sobretudo, um corpo que sentia um desconforto imenso em escrever mas que no entanto desejava.

E este livro já foi outra coisa, muito diversa. Assim como eu era outra. E não consigo mais saber quando exatamente eu comecei a pensar nas primeiras linhas dele. Mas sei que tudo mudou, o livro todo mudou, quando descobri que ele se chamaria Anunciação. E que por causa dessa escolha, inevitavelmente, ele dialogaria com algumas coisas muito complicadas.

Há inúmeras representações da Anunciação da Maria na tradição. E em quase todas elas, um vazio, um anteparo. Uma impossibilidade.

Anunciação do Botticelli

 

Anunciação do Fra Angelico
Anunciação da Maria Martins
Anunciação do Leonardo Da Vinci
Anunciação do Richard Long
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Anunciação do Pedro Franz

ciborgue

Os sagitários invejam minha sorte porque isso de morrer antes no corpo é viver duas mortes na memória (quantos anos correm os músculos de um cavalo? por quantos anos encantam os peixes das sereias?). Em média, por quanto tempo funciona a cabeça de um homem?

É por isso que hoje escolhi me sentar ao lado dos minotauros.

Inocência

Sou formada em letras, trabalho com livros há dez anos. Escrevo. E no entanto reprovei em literatura no segundo ano do ensino médio. Depois me mudei de cidade, comecei a trabalhar, e ter sido repetente quase não me influenciou em nada. Era tudo novo e aterrorizante e ao mesmo tempo solitário e uma adulteza obrigatória teve de surgir quando precisei enfrentar no primeiro dia de trabalho um telefone com dez linhas e os estranhos com quem eu precisava ser simpática. Sem tempo para traumas colegiais. Ter reprovado em literatura quando eu tinha, quanto, quinze anos, foi bem menos ruim do que crescer de repente aos nove anos.

Eu reprovei porque minha professora tirou algum tipo de licença dessas que todos os anos algum professor da escola pública tira. E a única nota seria o trabalho sobre um livro romântico e chato do qual não consegui passar das primeiras páginas em que se descrevia as maravilhas da flora brasileira. Descobri que eram menos de quatro páginas. Mas pareciam infinitas e eu não sabia que a gente não era obrigada a ler um livro desde a primeira página.

 

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Eu não consegui ler porque era difícil, porque não sou dessas que enfrenta as dificuldades e portanto desisti porque sim sou dessas que desiste. E quer se esconder. Nem que seja na sala do segundo segundo ano.

Chegaram as férias, as notícias de mudança e um aperto na garganta. E então eu li o livro. Desde a primeira página. Até o fim. Mas já não adiantava muito. Não senti nada de especial em ter finalmente lido. Continuei a achar o livro chato, meloso, feito de um amor que aos quinze anos eu já tinha certeza que não existia mesmo, não daquele jeito. Eu era do tipo que fugia mas não do tipo fraca, jamais me identificaria com uma virgem do romantismo rural brasileiro. Eu tenho 1,75 desde os 13. Eu nunca fui externamente frágil.

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Mas depois, não muito tempo, eu descobri que as palavras não pertenciam a ninguém. E talvez pudesse pertencer um dia a mim.

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E é tão curioso que este livro se chame Inocência.

(*fotos do livro alterado pertencente à série O que é literatura, em que tenho me dedicado esporadicamente — não sou do tipo que persiste)

um recomeço

Ela estava vazia, não se lembrava de nada, não sabia seu nome, aquele corpo que a incomodava era um corpo todo inédito, como eram novas as imagens que a absorviam naquele dia claro e frio de algum lugar desconhecido do planeta. Tudo se passou como se de um mundo minúsculo, úmido e seguro ela tivesse sido arrancada à luz de outro, imenso, velho e agreste. Hanna não tinha ideia, era a condição para que acontecesse, mas naquela tarde, quando abriu os olhos e acompanhou o traçado meticuloso dos tapetes do teto, ela soube já adulta que tinha nascido.

 

 

[em andamento]

do tempo

-I-

É a água que fura o barco

atolado na areia da praia.

E uma casa é construída manualmente como o são suas maquetes.

 

Esta casa que constroem sob minha janela

são ruínas desta mesma casa em outro tempo.

 

-II-

 

O tempo está na cesta de maçãs e a morte na semente.

 

A morte é ainda mais antiga:

a morte está no começo do mundo

e antes.

 

-III-

Não vai durar para sempre a semente.

Nem o amor.

Ou o barco que derrete com a chuva nas areias de Lisboa.

(Treze)

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Você sabe que não vai dormir com ele esta noite. E que o espaço entre a grade que impede, por uma questão de convenção, porque não há grades que impeçam vinte mil pessoas de ultrapassarem certos limites se todos quiserem isso, você sabe que o espaço entre a grade que afasta as primeiras fileiras de fãs do fim do palco é muito maior que o espaço mensurável entre ela, a grade, e as caixas de retorno, é muito maior que o fosso que tenta proteger e de fato protege o príncipe desejado que canta, com a mesma voz rouca de antes, todas as canções de sua adolescência.

[…]

Um conto pós-adolescente na linda revista literária Parêntesis.